sexta-feira, 1 de maio de 2009

My bad Lucky

Quando o carro arrancou eu sabia que nunca mais os voltaria a ver – e anos mais tarde, quando voltei lá, também tinha a certeza de que eles já lá não estavam. E não estavam.

Naquele dia, enquanto o meu pai levava o Citroën BX castanho, tipo banheira, por travessas e avenidas de uma Lisboa que para mim, miúdo, era um mundo, eu lançava olhares para as placas com os nomes das ruas, como Hansel atirava pedaços de pão para o chão – eu queria voltar, eu tinha de voltar àquele sítio, ao sítio onde estava uma parte de mim.

Eram uns 40 e andavam comigo para todo o lado. “O Bandido Maneta”, “Os Dalton Regeneram-se”, “Daily Star”, “Os Rivais de Painful Gulch”, “A Diligência”, “Jesse James”, se não os tinha a todos, tinha-os quase a todos. Até tinha uma mala própria para os transportar, uma mala cinzenta, quadrada, com duas rodinhas (só uma é que rolava, a outra tinha defeito) e uma asa para a puxar, porque os meus bracitos de 11 anos não aguentavam tanto peso.

Por aquela idade a minha vida andava à volta dos jogos do Spectrum 48k e dos livros do Lucky Lucke. O computador já estava habituado a ficar em casa, até porque para funcionar obrigava à presença de gravador, televisão, cassetes, enfim, uma logística que o tornava intransportável. Já os livros não. Esses tinham a tal malinha cinzenta, quadrada, com a rodinha defeituosa, e cabiam todos lá dentro, apertadinhos.

Com os irmãos longe, Jolly Jumper, Rantamplan e os Dalton eram meus companheiros de todas as noites. Era neles que pensava, era com eles que sonhava, eram as suas aventuras que me faziam feliz. Em frente ao espelho também eu sacava de uma arma, em tempos em que nem sabia o que era o Taxi Driver. Só queria ver se conseguia ser mais rápido do que a minha sombra. Não era. Nunca era. Por isso continuava a tentar, porque achava que um dia, se tentasse muito, muito, muito, conseguiria.

De cada vez que mudava de cidade, lá ia a minha roupa na mala vermelha, a minha vida na mala cinzenta. Mais do que saber se o meu novo quarto era grande, queria saber se naquele sítio novo havia livrarias. E se nessas livrarias existiria algum livro que me faltava na colecção. Uma nova descoberta implicava ir à lata amarela de Nesquik onde se amontoavam moedas dos trocos dos jornais que comprava para o meu pai e as notas que os tios e os avós ofereciam nos dias que me visitavam. Só saíam de lá para as mãos do senhor livreiro, que, em troca, me oferecia corações aos saltos em forma de livro animado.

Numa semana era capaz de o ler 20 vezes - três vezes ao dia. Cada livro novo tinha em mim o efeito do encaixe da última peça num puzzle. A minha vida era esse puzzle, que se completava com pouco, com o tal livro novo.

Um dia, naquele dia, que foi mais um dia em que mudei de cidade, perdi-os para sempre. Uma visita a Lisboa, uns dias num hotel não muito caro numa esquina perto do Marquês de Pombal, terminaram com uma fuga, uma fuga para a frente, uma fuga sem retorno, uma fuga que eu nunca percebi e jamais esqueci. A bagageira do Citroën BX, a banheira, que chegara com as minhas duas malas, a vermelha e a cinzenta, partia agora apenas com uma, com a que não me fazia falta, com a que eu queria que tivesse ficado para trás.

O meu pai fugia para não ter de pagar a conta. Paguei-a eu. E não foi com dinheiro.

Quase 20 anos depois apanhei as migalhas de pão que deixara no chão naquele dia, segui as pistas da memória, os nomes das ruas, das travessas de uma Lisboa que então já dominava, e encontrei o hotel onde ficara a mala da rodinha torta com os meus livros.
Na recepção contei à senhora a história dos livros, da mala, da fuga, do meu amor pelo cowboy solitário e pelo seu fiel cavalo. Contei-lhe tudo com um sorriso que não o era. Ela devolveu-mo. E eu sabia que era tudo o que ela me podia dar.

3 comentários:

  1. Ficaste com a memória desta estória e isso ninguém te tira!

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  2. Infelizmente fiquei com muitas mais memórias do género.

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  3. Gostava é que a malinha ainda lá estivesse e regressasse ao seu legítimo proprietário. Na impossibilidade de recuperar outras coisas, pelo menos isso...

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