sexta-feira, 10 de abril de 2009

O meu Edward Bloom



Descobri há uns anos que sou filho do Edward Bloom, e que não existem apenas Edward Blooms nos mundos fantasiosos e criativos de Tim Burton. Há Edward Blooms lá, no cinema, nas backstories dos grandes argumentistas, que se esforçam por inventar personagens fascinantes, como há Edward Blooms cá, a viver as suas vidas de faz-de-conta, a contar as suas histórias mirabolantes a quem gosta de se deixar levar.

Cresci a ouvir, encantado, as histórias do meu Edward Bloom. Como naquela noite tão escura, tão escura, tão escura em que ele me revelou, pela primeira vez, a sua verdadeira identidade. Afinal, o meu pai era o Homem-Aranha, o meu herói da banda desenhada. Estava ali comigo, naquele quarto, na Praia das Maçãs, mas logo que eu adormecesse teria de subir pela teia até à sétima nuvem, a verdadeira casa do senhor mascarado de vermelho e azul.

Quando percebi que, afinal, não havia Pai Natal, o Homem-Aranha não podia ser o meu pai e o meu herói já era o Bento, guarda-redes do Benfica, fui encantado por outra história, a da noite em que ele, o meu pai, pisou o relvado do Estádio da Luz, equipado à Académica de Coimbra, acabado de saltar do banco de suplentes para marcar um penálti ao Costa Pereira, o lendário número 1, campeão da Europa e titular da Selecção Nacional. O meu pai fez o golo, mas a Académica perdeu por 4-1.

E depois vieram as histórias da guerra do Ultramar, das namoradas que podiam ser miss mundo, dos feitos no jornalismo, das amizades tu-cá-tu-lá com gente que enchia revistas e abria telejornais. E eu sempre lá, a ouvir, já sem encanto, já sem crença, mas com a certeza de que, ao deixá-lo contar, ao deixar o Edward Bloom ser apenas ele, o Edward Bloom, estava a fazê-lo feliz, a oferecer-lhe o brilho de que ele precisava como de ar para respirar.

Tal como o outro Edward Bloom, o do Tim Burton, também o meu viveu aventuras ao lado de gigantes e anões, mulheres com dois torsos e bruxas mágicas, poetas e assaltantes de bancos. Eram todos eles que abrilhantavam as histórias, davam-lhes grandeza, profundidade, validade, traziam sorrisos a quem as ouvia e inveja a quem não as tinha vivido. Era para mim que invariavelmente se viravam os olhares dos que, no fim, me diziam: “Quem me dera ter um pai assim, com tantas histórias incríveis”. Eu devolvia o sorriso, já que era só o que podia fazer.

As histórias do velho Bloom, o do cinema, tinham tanto de bonito como de inocente. Eram fantasias que serviam para dar cor a vidas cinzentas, davam essência a dias que, de outra forma, não teriam o porquê de ser recordados. Como a história que Bloom criou para contar ao filho sobre o dia em que ele nasceu. Disse-lhe que nesse dia capturou um peixe gigantesco – o Big Fish – que lhe havia comido a aliança, e que ele o obrigou a cuspi-la, já que ele não lhe admitia que lhe roubasse o símbolo do amor que tinha pela mãe do rapaz. Mais tarde, à beira da morte, o filho ouviu do médico que assistiu ao seu nascimento, que o pai nem sequer lá estava, e que não houve peixe algum, e que o parto correu bem, que foi normal, e que nada de especial ou diferente aconteceu. E o miúdo sorriu, e preferiu continuar a pensar que no dia em que nasceu, afinal, houve peixe, e aliança, e uma história para animar plateias em dias de festa.

Muitas histórias do meu Bloom eram assim, inocentes, como a do Homem-Aranha ou a do golo no Estádio da Luz. Mas muitas outras tinham pouco de risível, e muito de coisa séria. E enquanto a ouvi-las estava apenas eu, o eterno ouvinte, o ouvinte inocente e que se limitava a sorrir com ternura a ouvir aquelas fantasias mascaradas de verdade, não havia problema. Só que as histórias, fantasiadas, e sobre coisas sérias, foram sendo contadas umas e outras vezes a toda a gente, a gente nada habituada a ouvi-las, gente que se encantava de facto por não as perceber como fantasias, mas como verdades. Só que essas fantasias duravam pouco e, quando reveladas, criavam desencanto, raiva, inimigos, guerras, ódios. E o meu Bloom não parou de as contar. E foi contando e contando e contando, e as pessoas foram desaparecendo. Os gigantes, os anões, as bruxas e os assaltantes de banco continuaram a ser histórias na boca do meu Bloom, mas, num estalar de dedos, a plateia deixou de estar lá.

As cadeiras estão vazias. A tenda há muito que foi desmontada. E, sozinho, o Bloom continua a pregar.

No dia em que morreu, o Bloom do cinema teve lá os seus gigantes, anões, bruxas, poetas e assaltantes de bancos.

No dia em que morrer o meu Bloom não terá lá ninguém. E nem as histórias, as fantasias, ficarão para contar. Porque já não encantam, apenas envergonham.

2 comentários:

  1. Bem, ao menos o teu Edward Bloom contava-te estórias mirabolantes!O teu Edward Bloom fez-te sonhar!O meu Bloom nunca tirou nem tira os pés da terra!Tenho muitas, mesmo muitas, dúvidas que saiba sonhar!(mas acho que já soube!A vida foi muito dura com o meu Bloom!)

    E porque nunca me contou estórias de encantar, hoje também não me desencanta nem me envergonha!

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  2. Um dos meus filmes favoritos... ou será o meu filme favorito?

    Mas, já agora, em jeito de nota de rodapé: o filho do Bloom do cinema certamente também julgava que não ia ter lá ninguém. E depois foi o que se viu.

    E quem sabe se não vais encontrar por lá uma dessas quase-misses e um ou outro companhero do ultramar? À vezes basta isso para fazer toda a diferença, acredita!

    beijinho grande

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